A parte de cima tem forma de uma mulher bela com o cabelo ondulante e brilhante e os seios nus; a parte de baixo apresenta escamas iridescentes de um peixe. Uma sereia mítica está representada num relevo em pedra na parede de um mosteiro irlandês. Da sua morada subaquática, ela convida ao compromisso, delicadamente manuseando o espelho e o pente favoritos. Dois peixes curiosos nadam em seu redor, reflexo da sua natureza marítima. Apesar de a sereia ter um papel exemplar no simbolismo cristão, ela vem de tradições muito mais antigas. Aqui, chama atenção para os encantos da carne personificados no feminino enquanto sensualidade, fluxo, profundezas inconscientes e vida instintiva.
Para os homens que se arriscam a contemplá-la, a sereia é ao mesmo tempo sedutoramente humana e bastante estranha. Como personificação das águas geradoras do mar e da psique, a sereia, além de representar a perspectiva de amor sensual, prazer e realização dos desejos, também tem o dom da profecia. O habitat da sereia é o mar aberto, a costa rochosa e um mundo subaquático de inacreditável luxúria, que as vezes partilha com o tritão, o seu equivalente masculino. No entanto, a atração e o perigo são inseparáveis na sereia. Como as sirenes da mitologia grega, a sereia pode atrair os marinheiros à destruição ou aprisiona-los no seu reino aquático. Para muitas culturas, a sereia encarnou o temor à dissolução da consciência bem como o temor à mulher que é identificada como agente dessa dissolução por causa das suas características de inconstância, dissimulação, erotismo esmagador e encanto fascinantes.
A sereia está relacionada com um panteão universal de deuses e deusas da água, ninfas e tritões e, com eles, representa o poder dos mares, dos rios e de todos os domínio aquáticos profundos na sua abundância e imprevisibilidade. Entre os seus mais antigos antepassados está Adapa, o benfazejo deus do sol babilónico, meio peixe, meio homem, e Atargatis, a deusa cuja ira violenta transmite o aspecto destrutivo das energias eróticas. As sereias pertecem à linhagem de Afrodite, a deusa grega do amor, nascida no mar. A alquimia via a sereia como Melusina, a criatura aquática que é uma variante da serpente mercurial, encarnando o espírito do inconsciente. Dizia-se que ela tinha seduzido Belzebu, para que praticasse a feitiçaria, e que descendia da baleia que engolira Jonas, o que a associa ao inconsciente, enquanto <<ventre de mistérios>> e inocência do Paraíso. Na fantasia alquímica Melusina <<vive no sangue>>, o que sugere que ela existe na substância interna do homem, e que, chamando-o das profundezas, ela anseia por uma alma e redenção; a substância de alma insconsciente que quer torna-se consciente para ser humanizada.
Mas a sereia é constantemente arisca. Em alguns contos, quando o homem lhe descobre a cauda de peixe, que evoca o seu próprio instinto inconsciente, sente repulsa; rejeitada, ela desaparece de novo no inconsciente. No conto de Hans Christian Andersen <<A Pequena Sereia>>, esta é trazida ao mundo terrestre; mas embora adquira pés humanos, todos os seus passos lhe causam o sofrimento de uma espada que a atravessa, atestando a dificuldade de trazer o material inconsciente à forma integrada consciente. A natureza dupla da sereia, ao mesmo tempo emotiva e fria, é um reflexo da proximidade e da distância, do contacto e do afastamento que experimentamos relativamente às coisas do mundo psíquico. A sereia é mercurial, mágica, reluzente, deslumbrante - e impessoal. Pode ser encontrada, abordada e até transformada. Mas como encarnação do inconsciente, ela própria exerce um extraordinário fascínio.
No Brasil, Iemanjá é sua forma mais difundida. A festa de Iemanjá é em 2 de Fevereiro e nos candomblés e xangôs é representada, no salão exterior das danças, como uma sereia. A mãe-d’água dos iorubanos, Orixá marítimo, a mais prestigiosa entidade feminina dos candomblés da Bahia. Recebe oferendas rituais, festas lhe são dedicadas. Protetora das viagens, no processo sincrético das deusas marinhas passou a ser Afrodite, Anadiômene, padroeira dos amores, dispondo uniões, casamentos, soluções amorosas. Sua sinonímia é grande: Janaína, Dona Janaína, Princesa do Mar, Princesa do Aiocá ou Arocá, Sereia, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do Mar, Sereia Mucunã, Inaê, Marabô, Dandalunda. Tem o leque e a espada como insígnias; as cores rituais são o branco e o azul. Protege, defende, castiga, mata. Por vezes se apaixona. Tem amantes, os quais leva para o fundo do mar. Nem os corpos voltam. É amorosa, bondosa, ciumenta, vingativa, cruel, como todas as égides primitivas.
(do livro: O Livro dos Símbolos. autor: Archive for Research in Archetypal Symbol. editor: Kathleen Martin. editora: Taschen.)
(do livro: Mitologia dos orixás. autor: Reginaldo Prandi. editora: Companhia das Letras.)